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O festival folclórico anunciado está aí como testemunho de nossa indignação. São insuficientes as mais de trezentas e cinquenta vidas perdidas para a covid? As sequelas e traumas físicos e emocionais até hoje presentes na maioria dos infectados no Município, sem a atenção necessária da parte do sistema de saúde, não contam?
Fátima Guedes*
É agressivo (pra não dizer violento) o volume de folias, ou melhor, de sacanagens festeiras impostas à massa analfabeta de Parintins: a cada intenção politiqueira engendrada nos gabinetes é motivo para desvios e queima de dinheiro público. Admitamos ou não, o caos instalou-se literalmente na “capital brasileira do folclore” – referência constante nas bajulações das mídias locais.
A partir de uma leitura problematizadora sobre a função ou sobre os efeitos das sacanagens festeiras numa sociedade tal qual a nossa, dominada por cabrestos institucionais, conclui-se: em primeiro plano, está a rentabilidade para as chefias, tanto no sentido de garantir poder, quanto na certeza de lucratividade financeira, de enriquecimentos ilícitos. Quanto maior o volume da carteira (independentemente dos meios acumulativos) maiores possibilidades de domínio sobre populações e sociedades desprovidas de autoconsciência, de autoeducação.
E os efeitos das sacanagens festeiras? Quem tem percepção aguçada para ler a realidade, ouvidos atentos para noticiários e queixumes diários da população, impacta-se com a ascensão de tragédias sociais manifestadas em violências domésticas, circulação desenfreada de drogas lícitas e ilícitas, prostituição generalizada (de gabinetes a periferias...), nível baixíssimo no ensino/aprendizagem, assassinatos, acidentes no trânsito com vítimas fatais, adoecimentos em massa, esgotos fétidos em céu aberto, animais doentes e abandonados nas ruas, lixeiras viciadas, ruas esburacadas, poluição sonora... De resto, o silêncio da plateia embriagada: sem se aperceber, sustenta privilégios e vantagens de nulidades fantasiadas de administradores e de seus respectivos bedéis.
O festival folclórico anunciado está aí como testemunho de nossa indignação. Questiona-se: são insuficientes as mais de trezentas e cinquenta vidas perdidas para a covid? As sequelas e traumas físicos e emocionais até hoje presentes na maioria dos infectados no Município, sem a atenção necessária da parte do sistema de saúde, não contam? A intenção dos fundamentos apontados é provocar autorreflexão, autoconsciência para tomada de atitudes coerentes e ao mesmo tempo para justas intervenções.
Temos dúvidas se é justo a Parintins, conhecida mundialmente por seu potencial artístico, ser condenada à morte por descompromissos sociais e por interesses político mercadológicos...
Por esse olhar, o coletivo sadio da Ilha solidariza-se à Defensoria Pública (uma das últimas brechas de acolhimento aos gemidos da comunidade por Justiça Social), quando recomenda alteração do Decreto Municipal sobre a obrigatoriedade do uso de máscaras em locais fechados. Em termos figurativos, a Defensoria nos lembra Benjamim Franklin, ex-presidente dos Estados Unidos, referindo-se ao atual modelo de democracia em países colonizados: Democracia são dois lobos e uma ovelha decidindo sobre o que se vai comer no jantar; a ovelha luta incansavelmente para anular o resultado da escolha.
O apontado até aqui reafirma o anseio de sociedades saudáveis - o direito à vida digna. Para tanto, o Artigo 196, da Constituição Federal (tão falado e pouco vivido) é mais um verbo desbotado no papel: Saúde é direito de todos e dever do estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Se tão importante Direito é negado, relaxado ou vira mercadoria eleitoreira, compete ao povo acordar, dizer não às iniquidades institucionalizadas e reinventar-se em comandantes da própria história.
Nossa responsabilidade social insiste e persiste despertar autoconscientização comunitária para um agir autônomo, lúcido; em paralelo, sensibilizar gestores, representatividades, assessorias a atuações éticas e humanizantes: elementos básicos e fundamentais à efetivação da qualidade de vida da população...
O libera geral no momento de instabilidade da pandemia nos cobra - enquanto contribuintes, agentes político históricos-, intervenção já! Quem se ama e se respeita faz seu tempo, seu cuidado, o melhor por si e pela comunidade: uso permanente de máscara, distanciamento social, recolhimento, alimentação saudável, enfim, uso dos saberes popular/tradicionais de saúde...
Se os poderes declinam incompetência, resta ao Povo cuidar bem de si, da Mãe Terra e de todas as formas de vida componentes de si mesmo.
Chega de subalternalidade! Autonomia ou Morte!
* Fátima Guedes é educadora popular e pesquisadora de conhecimentos tradicionais da Amazônia. Uma das fundadoras da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã, da TEIA de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta. Militante da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde (ANEPS). Autora das obras literárias, Ensaio de Rebeldia, Algemas Silenciadas e Organizadora do Dicionário - Falares Cabocos.
Foto: Mascara no Lixo - Floriano Lins



