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| Foto: Rafa Neddermeyer/COP30 Brasil Amazônia/PR |
“Nossa derrota esteve sempre implícita na vitória alheia, nossa riqueza gerou sempre a nossa pobreza para alimentar a prosperidade dos outros: os impérios e seus agentes nativos. Na alquimia colonial e neocolonial, o ouro se transforma em sucata e os alimentos se convertem em veneno”. (Eduardo Galeano)
Por: Fátima Guedes
Nos dias 10 a 21 deste mês de novembro, Belém/PA, acolheu a trigésima Conferência das Partes (COP 30). Aproximadamente 70.000 pessoas ligadas a movimentos diversos, nacionais e internacionais de povos originários e tradicionais, camponeses/as, indígenas, quilombolas, pescadores/as, extrativistas, marisqueiras, trabalhadores/as, sindicalistas, população em situação de rua, quebradeiras de coco, povos de terreiro, mulheres, comunidade LGBTQIAPN+, jovens, afrodescendentes, pessoas idosas - povos da floresta, do campo, das periferias, dos mares, rios, lagos e mangues quebraram silêncios, isolamentos, discriminações, reagiram e enfrentaram com jeitos peculiares a farsa capitalista de “negociar soluções para a crise climática global”.
Em termos figurativos, tais negociações assemelham-se a um caldeirão saborizado sob acordos entre chefs* das nações comandantes. A gororoba incrementada com ‘temperos’ de natureza viciante certamente empachará* de ilusões mentes colonizadas.
Há séculos a realidade sociopolítica mundial vive e até se submete ao comando de sistemas, entidades e de grupos autocráticos. São influências de cunhos político ideológicos aliadas a dogmatismos religiosos. Em suas problematizações, o Escritor Eduardo Galeano tecera anúncios/denúncias, despertares de nossa realidade colonizada, constantes na Obra, As Veias Abertas da América Latina.
Em realidade, todas as formas de vida independentemente da espécie necessitam sobreviver e, em nome de uma sobrevivência padronizada por autocracias, na maioria das vezes, anula-se a racionalidade humana; o self* ensurdece e se deixa conduzir por modelos, padrões classistas; por comandos concebidos e até aceitos como regras, dogmas supremacistas sob propósitos de camuflar condições servis, proletárias, escravistas falseando uma aparência ou um padrão de superioridade e falsa autonomia.
Essa gororoba toda vem sendo muito bem temperada entre os chefs das COPs. O poder do capital saboriza via atrativos sedutores, democracistas, as bases sociais sedentas, a classe trabalhadora desnutrida por longos períodos de jejuns e por busca de oportunidades participativas para levar desabafos e indignações às farsas governistas, contraditórias a práticas ditas de defesa e proteção aos recursos naturais - base teórica da anunciada Justiça Climática.
Não participei do Evento por razões ideológicas. Na verdade, descrença nos arranjos técnicos oficiais sobre defesas ambientais, mudanças climáticas estruturais e etc. Porém, sintonizei com os atrevimentos de Companheirxs e Camaradas forjando brechas de rebeldia contra farsas estruturais advindas da cúpula sistêmica. Apesar do empenho autêntico, aguerrido dos coletivos, das organizações sociais/populares, das comunidades nativas e tradicionais, nós, proletárixs, classe trabalhadora oprimida, servis de um sistema piramidal, precisamos rever, aprofundar estratégias, metodologias e ocupar nosso legítimo lugar na história. Afinal, na Democracia, manda a força e o poder do povo, da maioria organizada e unida; não o poder do capital.
É inegável: diante do quadro apocalíptico se faz urgente e necessário aprofundamentos nas teorias revolucionárias para que os movimentos sociais/populares intervenham com determinação, ousadia e ocupem o comando de outras Cúpulas legitimamente dos Povos.
Acompanhei relatos... Intervenções significativas! Denúncias, proposições coerentes, inquietações que não podem calar, mascarar-se ou submeter-se a renegociações sob argumentos de acordos em nome de justiça e paz: são “declarações acumuladas em lutas, debates, estudos, intercâmbios de experiências, atividades culturais e depoimentos, por longo tempo”.
Nas sistematizações da Declaração da Cúpula dos Povos, pontuei questões que julguei importantes cuja linguagem alcança as bases populares, isolamentos e gemidos silenciados. Ao mesmo tempo em que cutucam apatias, desinteresses, omissões e apontam caminhos para processos libertários de alfabetização político-social, para um justo enfrentamento ao modelo de exploração a modos de vida sustentáveis, a recursos naturais e à vida em sua essencialidade.
Vir-a-Ser
Possibilidades a justas conquistas: ativismo, protagonismo popular na construção de soluções saudáveis e praticização das sabedorias ancestrais; distribuição igualitária da riqueza; desmilitarização; intervenções sobre corporações protegidas de taxações e sobre explorações de biomas e combustíveis fósseis; combate à criminalização dos movimentos, organizações populares, perseguição e assassinatos de lideranças; fortalecimento de instrumentos internacionais na defesa dos direitos dos povos silenciados; defesa dos direitos, da autonomia e participação das mulheres nos comandos da história e da vida; transição justa, soberana e popular de garantia aos direitos da classe trabalhadora; efetivação da reforma agrária popular e incentivo à agroecologia - garantia da soberania alimentar e combate à exploração fundiária; combate à privatização, à mercantilização e financeirização dos bens comuns e serviços públicos.
Nas questões pontuadas, não se pode perder de vista as intenções dos chefs em relação ao tipo de temperos para atrair as massas e embriagá-las. A “revolução verde” eternizou-se. E o incentivo à agroecologia como fundamento de “defesa e justiça ambiental” exige vigilância, alinhamento e intervenção das bases comprometidas com modos de produção e consumo. A real efetivação da Declaração da Cúpula dos Povos cobra da população mundial consciência de classe, autoeducação e autorresponsabilidade para que os registros saiam do papel e se transformem em prática interventiva, revolucionária pelo Bem-Viver.
Enquanto temperos sedutores contaminarem mentes e paladares, os gritos da COP 30 se perderão nos desertos e devastações; enquanto 70.000 pessoas gritavam por justiça ambiental, climática, agroecologia, o cardápio disponível contradizia-se à defesa da vida: refrigerante, comidas processadas, embutidas, outras à base de hormônios - frangos, ovos e etc. Aceitar o veneno na mesa é dizer sim ao mercado da morte!
Impossível também dissociar agroecologia das práticas feministas: “Sem feminismo não há agroecologia”. Entre as estratégias de chefs, o mercado do falso embelezamento seduz e silencia lideranças (as próprias vítimas) permitindo-lhes consumos extravagantes, abusivos de cosméticos ignorando-se explorações ao Ventre Sagrado da Mãe Terra - a Fêmea Universal.
Gritar, protestar, espernear e ao mesmo tempo engolir a gororoba ???... O tempero venenoso continua nas mesas e nas mentes. Somente a justa criticidade fará o descarrego; o vômito é inevitável: ameniza empachamentos e reconstitui a flora agredida e ameaçada.
Na unificação das militâncias é possível arrebentar com o caldeirão, rever a toxidade dos temperos e, assim, desnutrir o inimigo comum – o capital e respectivos chefs. “A história é tempo de possibilidades”, anunciara o Educador Paulo Freire. Para tanto, a autonomia, a coragem, a determinação e a ousadia são temperos populares e eficazes para uma justa REVOLUÇÃO. Unamo-Nos!
Falares de Casa
As Veias Abertas da américa Latina. GALEANO, Eduardo. Paz e Terra/SP.1971.
Chefs – alegoria aos chefes dos países que “temperaram” a COP 30.
Empachar – causar indigestão, embaraçar.
Gororoba – comida feita de forma desordenada, de má qualidade ou de aparência duvidosa.
Self – Centro da personalidade.
Maria de Fátima Guedes Araújo. Caboca das terras baixas da Amazônia. Educadora popular, pesquisadora de saberes popular/tradicionais da Amazônia. Licenciada em Letras pela UERJ (Projeto Rondon/1998). Com Especialização em Estudos Latino-americanos pela Escola Nacional Florestan Fernandes/ UFJF. É uma das fundadoras da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã, da TEIA de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta. Militante da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular em Saúde (ANEPS). Autora das obras, Ensaios de Rebeldia, Algemas Silenciadas, Vestígios de Curandage e Organizadora do Dicionário Falares Cabocos.
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Opinião



