![]() |
Amarildo é Tição que resiste aos tempos modernosos e pratica sua autonomia contra as imposições do mercado. |
Não adianta olhar pra trás e se prender nas dificuldades. Se queremos vencer, temos que sempre olhar pra frente. Acreditar que somos capazes.
Fátima Guedes*
O véu das noites modernosas avança impiedoso sobre sonhos e sabedorias ancestrais. O amanhã se obscurece de matizes tecnológicos deterministas... Aqui e ali resistem buscadores de tesouros em cuja teimosia acalantam memórias transformando-as em estrelas: embora tímidas e/ou solitárias selam um tempo e aquarelam horizontes de infinitas possibilidades.
A poética introdutória reafirma a riqueza dos saberes popular/comunitários. Neste cenário, uma estrela já entrando em ciclo cadente permanece indelével na história de Parintins. É o relojoeiro José Amarildo Ribeiro, 59 anos, residente na rua Padre Augusto Gianola, 3423, Paulo Correa. José Amarido cursou apenas o ensino médio e, portanto, forjara caminhos adversos por sobrevivência.
A estrada percorrida pelo personagem é longa, assim como as naturais vulnerabilidades do tição* ainda acesso. Por esse olhar, considero importante referendá-Lo.
As memórias aqui tecidas entrecruzam-se em cenários de intensos desafios... O tempo infanto-juvenil de Amarildo fora marcado por duros estágios e desafios às próprias vulnerabilidades. É Amarildo quem faz o relato...
Nasci no interior de Nhamundá*, na comunidade do Urucuri. Não conheci mãe. Ela morreu de uma estrepada de prego; eu tinha uns 4 anos. Meu pai morreu debaixo de uma árvore, quando fazia um roçado na comunidade do Mamuriacá*. Minha avó me assumiu. Uma vez, próximo da comunidade da Brasília, já era noite, minha avó pediu abrigo a um compadre. Dormimos lá. De manhã ele falou pra vovó: “- poxa comadre, a senhora bem que podia deixar seu neto aqui pra ele ajudar plantar o milho; quando a senhora voltar, pega ele”. Fiquei triste, mas não podia dizer nada.
No outro dia, fomos plantar o milho. Ele fazia as covas e eu plantava. Eu acelerava por causa do sol muito quente. Se era pra plantar 8 sementes, eu colocava 15, 20 até 30, pra acabar logo. Daí, ele falou pra minha avó: - seu neto me deu muito prejuízo; plantou um monte de milho tudo em touceira. Já tava feito! (ri...)
Comecei a estudar mesmo aos 8 anos. Aos 15 anos, minha avó me levou pra Manaus. Minha tia trabalhava com o dono do Rei dos Relógios, no Beco do Comércio e me levou pra trabalhar na casa dele. Lá, eu lavava carro, limpava casa, fazia mandados... Ele gostou do meu trabalho e me levou pra loja. Já tinha 17 anos. Aí fui trabalhar como vendedor de relógio, lá mesmo. Observava com muita atenção um senhor, sêo José, que consertava relógio. Fiquei ali por 6 anos.
Saí da empresa porque não aceitei seguir a religião dele. Naquele tempo começaram surgir vendedores ambulantes. Peguei uma banca e comecei como vendedor ambulante. Até hoje trabalho assim. Também conserto e vendo relógio, conserto celular. Acho que mais de 20 anos.
Amarildo tece considerações sobre o modelo de mercado que se impõe a quem se arrisca investir na teimosia e na sorte...
Olho ao meu redor, fico observando jovens, adolescentes sem rumo... O mercado que está aí é o que se tem. Encaro normalmente essas coisas porque não vejo outra saída pra quem quer sobreviver. Fui me profissionalizando vendo os objetos que vão parando e os que vão aparecendo... Até celular aprendi consertar. E aprendi tudo isso sem nenhum curso; só na observação: mexendo aqui, ali, até dar certo.
Não adianta olhar pra trás e se prender nas dificuldades. Se queremos vencer, temos que sempre olhar pra frente. Acreditar que somos capazes. Um entrave pro meu trabalho são as máquinas dos relógios: existe as automáticas e as de baterias. Às vezes é difícil encontrar peças para relógios automáticos; já as máquinas de bateria são mais fáceis: a gente já troca logo. Muita gente ainda me procura pra comprar relógios antigos e mesmo pra consertar. Principalmente os automáticos, porque não é todo mundo que gosta de mexer; dá muito trabalho e pouco lucro; perdemos muitas horas e dias ajeitando e, às vezes, não compensa.
Apesar de toda a desvalorização do mercado sobre produções autônomas, criativas (base de todo o arsenal tecnicista, industrial...), alfaiates, relojoeiros, sapateiros e categorias similares resistem às invisibilizações e garantem o básico à sobrevivência. O trabalho como relojoeiro ainda compensa, apesar das dificuldades...
Aqui em Parintins, por exemplo: se eu for arranjar um trabalho fora não ganho o mesmo do meu Ponto*. Sem contar que vou trabalhar fora de casa. Ganhar menos ainda... Minha renda mensal varia: calculo uns mil reais. No tempo das festas, dá pra fazer uns 70 a 80 reais por dia... Empresas ou serviço público jamais me paga esse valor. Meu Ponto é minha sobrevivência. Um coisa: sou curioso no que faço. Vivo tentando ajeitar relógios antigos, parados, tipo carrilhão: aquele relógio de máquina grande, tipo aquele da torre da catedral*... Ah, se eu conseguisse mexer com um relógio daqueles! Era tudo!
O atual sistema impõe valores e princípios que destoam com uma ética universal humana*. O argumento é perceptivo na cotidianidade, na práxis manifestada pelas novas gerações. Amarildo traz suas considerações e deixa seu recado...
A gente sabe que hoje o desemprego está muito grande; os jovens não têm praticamente nenhuma profissão; ficam esperando empregos das prefeituras, de empresas... Tá difícil! Essa turma precisa entender que nada vem de graça. Primeiro a gente tem que ralar pra provar do suco. Essa turma jovem precisa entender que sem estudo, sem bons cursos profissionalizantes não vai não! Digo mais: procurem uma profissão, inventem coisas que tragam vantagens positivas, antes de ficarem esperando concursos, diplomas e promessas... Essas últimas, dificilmente são cumpridas.
E antes que se apaguem as últimas memórias de profissões e sabedorias popular/comunitárias de Parintins/AM, Amarildo, com sabedoria e esperançamentos, sopra o tição... Quem sabe, as energias das chamas ainda acessas aqueçam corações sensíveis e despertem olhares sobre a importância de sobrevivências dignas e autônomas...
Amarildo aquece o tição e abana a fé nas possibilidades...
A maior riqueza do ser humano não está no tamanho da conta bancária, mas na capacidade de inventar coisas boas pra vida e ser feliz. O amanhã a Deus pertence. Foram as dificuldades que me levaram até onde cheguei. Meu Ponto é a prova de que Deus não abandona quem Nele confia. Digo para todos: segurem na mão de Deus e se entreguem confiantes.
E vamos nós, de mãos dadas, caçando memórias perdidas, silenciadas nos calabouços do industrialismo sistêmico, arriscando em Inéditos Viáveis*.
Falares da Casa
Ética Universal Humana - “O direito de ser, de viver dignamente, de amar, de estudar, de ler o mundo e a palavra, de superar o medo, de crer, de repousar, de sonhar, de fazer coisas, de perguntar, de escolher, de dizer não, na hora apropriada, numa perspectiva de permanente sim à vida”. (FREIRE, Pedagogia da Indignação, p. 118, 2000)
Inéditos Viáveis - para o Educador Paulo Freire, a expressão, “tem a ver com a força de reinvenção da sociedade e da vida, que se movimenta inexoravelmente para o ser mais, apesar de todas as formas de opressão”. (Artigo científico - 1964 e o tempo presente: a educação e seus inéditos viáveis. p. 50)
Nhamundá - município do interior do Amazonas, limite com o Estado do Pará.
Ponto - referência popular sobre locais de trabalho. ODLIRAMA: Serviços Técnicos - Relógios e Celulares
Só dá pro deles - do vocabulário parintinense: o mesmo que “vão se arrebentar”.
Tição - resto de madeira queimada ainda em brasa.
Tuíra - pele seca, desidratada por desnutrição e/ou excesso de sol.
* Fátima Guedes é educadora popular e pesquisadora de conhecimentos tradicionais da Amazônia. Uma das fundadoras da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã, da TEIA de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta. Militante da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde (ANEPS). Autora das obras literárias, Ensaios de Rebeldia, Algemas Silenciadas, Vestígios de Curandage e Organizadora do Dicionário - Falares Cabocos.
Foto: Floriano Lins
Tags:
Opinião